terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Não me abandone jamais





"baby, baby... never let me go"


Existem livros bons. Livros ruins. Livros ótimos, livros bem-escritos. Mal-escritos. Obras-primas. Livros famosos e livros "de polpa". Best-sellers e aqueles que só a família do escritor lê. Tem também aqueles que nem a família do escritor lê. Tem os fenômenos. E aqueles que a crítica descem o pau. Tem os livros que a gente empurra página por página goela abaixo, não vendo a hora de chegar no fim. E aqueles que a gente devora. Tem livros que mudam as pessoas e outros completamente esquecíveis.
E tem aqueles livros, raros livros, que parecem feitos pra gente.

Então não importa a opinião da crítica ou o quão tecnicamente aperfeiçoados eles são. Na verdade, não importa nada disso aí de cima. Tudo é irrelevante, a não ser aquela relação de cumplicidade que se desenvolve entre leitor e leitura durante as horas compartilhadas juntos.
Eu sei que é meio piegas falar assim, mas eu não conseguiria descrever de outro jeito Não me abandone jamais. Claro, essa é uma descrição muito pessoal. Talvez até demais. Mas quando esse tipo de laço se desenvolve com uma obra é impossível falar sobre ela como quem analisa de fora. Eu ousaria dizer que é até um desperdício querer analisar, por exemplo, a estrutura narrativa, o quão crível são os personagens, os pontos de virada e os truques estéticos. Às vezes acontece de uma história nos afetar além do racional ou da superfície emocional provocadora de lágrimas, ela nos atinge em algum lugar meio desconhecido e, de repente, é como se ela fosse parte de nós mesmos. E só dá vontade de ler, ler e ler, de imergir completamente pra dentro desse novo universo, de ser parte do livro. Dá vontade de ler rápido e chegar logo ao final e, ao mesmo tempo, dá vontade de que a história nunca realmente acabe.

Eu acho que é isso que os professores querem dizer quando mencionam "a magia da leitura". Ou não. Mas pelo menos, pra mim - que não sou professora - é isso que significa. Essa é a magia. Essa sensação de ter encontrado um refúgio que é só teu e, ao mesmo tempo, uma companhia cheia de personagens e de vida. Essa coisa de apoderar-se da história e de repente ela é a sua história favorita e ai de quem falar mal do livro, ou dizer que não gostou! Dói como se a pessoa tivesse ofendido a nós mesmos. "Sério que tu gostou desse livro? Eu achei uma porcaria!" é quase como um "Pelo amor de deus, Fulaninha. O que diabos tu fez na cara? Tá parecendo uma ogra assassina".

E foi isso que "Não me abandone jamais", depois de 18hs lendo sem parar, se tornou pra mim. Uma extensão, um pedacinho de mim mesma escrita em 344 páginas. Talvez, eu diria, um pedacinho muito melhor e mais lindo que qualquer outro. O meu melhor.

"Ruth, por falar nisso, foi apenas a terceira ou quarta doadora que pude escolher. Já havia uma cuidadora designada para ela, na época, e lembro-me que foi preciso uma certa dose de coragem de minha parte. Mas no fim dei um jeito, e assim que a vi de novo, naquele centro de recuperação de Dover, nossas diferenças - ainda que não tivessem exatamente sumido do mapa - não me pareceram nem de longe tão importantes quanto tudo o mais: o fato de termos crescido juntas em Hailsham, o sabermos e nos lembrarmos de coisas que ninguém mais sabia ou das quais ninguém mais se lembrava. Foi dessa época em diante, imagino, que comecei a buscar nos doadores pessoas conhecidas no passado e, sempre que possível, de Hailsham.
Houve épocas, no decorrer desses anos todos, em que tentei esquecer Hailsham e me convencer de que não seria bom ficar olhando tanto para trás. Porém num determinado momento simplesmente parei de resistir. E isso teve a ver com um doador em particular, de quem tomei conta certa feita, no meu terceiro ano como cuidadora; com a reação dele quando comentei que era de Hailsham. Ele tinha acabado de sair da terceira doação, que não dera muito certo, e já devia saber que não iria se safar. Embora mal conseguisse respirar, me olhou e disse: "Hailsham. Aposto como era um lugar lindo". Na manhã seguinte, batendo um papinho na tentativa de distraí-lo daquilo tudo, perguntei de onde ele era; o doador mencionou algum lugar em Dorset e sua expressão, por baixo da pele manchada, passou a um tipo bem diferente de esgar. Foi então que caí em mim e percebi a vontade imensa que ele tinha de não se lembrar de nada. Tudo o que ele queria era que eu falasse de Hailsham.
Portanto, durante os cinco ou seis dias que se seguiram, contei-lhe tudo o que ele quis saber, enquanto, do leito, ele me ouvia fascinado, com um leve sorriso nos lábios. Falei dos nossos guardiões, das caixas com as coleções que eram guardadas debaixo da cama, do futebol, das partidas de rounders, do caminho estreito que contornava todos os cantos e recantos externos do casarão, do lago com os marrecos, da comida, da vista que tínhamos das janelas da Sala de Arte pela manhã, com os campos cobertos de bruma. Às vezes ele me fazia repetir vezes sem conta a mesma coisa; algo que eu mencionara no dia anterior voltava a ser alvo de perguntas, como se ele nunca tivesse escutado uma única palavra sobre o assunto. "Vocês tinham um pavilhão de esportes?" "Quem era seu guardião predileto?" De início, pensei que fosse apenas efeito dos remédios, mas depois me dei conta de que ele estava bem lúcido. Mais do que ouvir falar de Hailsham, ele queria se lembrar de Hailsham como se Hailsham tivesse pertencido a sua própria infância. Sabia que estava perto de concluir, de modo que me fazia descrever as coisas de forma que elas penetrassem de fato em sua lembrança. A intenção dele, talvez- durante as noites insones devido aos remédios, à dor e à exaustão -, era tornar indistintos os contornos que separavam as minhas memórias das suas. Só então compreendi, compreendi de fato, quanta sorte tivéramos - Tommy, Ruth, eu, na verdade todos nós."

título: Não me abandone jamais [Never let me go]
escritor: Kazuo Ishiguro
tradução: Beth Vieira
editora: Companhia das Letras
páginas: 344
ano: 2005

2 comentários:

Karina Block disse...

Olá Lucy, antes de tudo adoro falar Lucy, me faz lembrar rapidamente o pedacinho do filme "Como se fosse a primeira vez", em que Adam Sandler canta para Drew Berrymore:
"Forgetful Lucy...
Cracked her head like Gary Busey.
But I still love her so.
And I'll never let her go..."


Enfim, saindo de meu devaneio, queria agradecer por esse post. Terminei ontem "Não me abandone jamais", ia lendo aos pouquinhos durante as terríveis viagens de ônibus pelo centro, e o livro deixava instantaneamente aquele ambiente lotado, cheio de conversas das quais não queria ouvir se transformar em Hailsham, Casário ou nas lindas e sensíveis viagens da Kathy H.. Perdia-me completamente entre diálogos, histórias e quase o ponto em que deveria descer.

Há alguns dias, inevitavelmente atrasei a leitura, por não querer saber o final, mesmo sabendo que não teria como mudar. E queria mudar, queria com toda sinceridade, queria que fosse diferente. Eu estava envolta pelas personagens, pelas imagens que me proporciovam, por Ruth, Tommy e a querida Kathy. Então quando acabei o livro, meu coração quebrou ao meio, ou talvez a melhor forma de se dizer, foi arracando um pedacinho, porque eu pertencia àquele livro, àquela história, me sentia como uma personagem. Apenas, ao final fiquei longe de tudo, com olhos marejados, querendo os proteger.

Mas, mesmo se eu pudesse mudar, nunca seria o final perfeito.

Quando li o que escreveu, entendi o que quis dizer, talvez tenha entendido (quero dizer). Foi algo especial para mim ler àquilo que também senti, de certa forma.

Com carinho,
Nina.

Greicy disse...

Oi, Lucy.
Então, eu ainda não tive a chance de ler esse livro (Que parece ser incrivel), mas assisti o filme, e achei ele razoavel.
Tenho grande esperança de ler esse livro e entrar no muito incrivel de Kazuo.

Beijo,
Greicy S.